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domingo, 10 de março de 2013

Comprender Espinosa




Sandro Góes publicou:

Espinosa adverte: "Os filósofos concebem as emoções que se combatem entre si, em nós, como vícios em que os homens caem por erro próprio; é por isso que se habituaram a ridicularizá-los, deplorá-los, reprová-los ou, quando querem parecer mais morais, detestá-los. Julgam assim agir divinamente e elevar-se ao pedestal da sabedoria, prodigalizando toda a espécie de louvores a uma natureza humana que em parte alguma existe, e atacando através de seus discursos a que realmente existe. Concebem os homens, efetivamente, não tais como são, mas como eles próprios gostariam que fossem. Daí, por consequência, que quase todos, em vez de uma Ética, hajam escrito uma Sátira, e não tinham sobre Política vistas que possam ser postas em prática, devendo a Política, tal como a concebem, ser tomada por Quimera, ou como respeitando o domínio da Utopia ou da idade do ouro, isto é, a um tempo em que nenhuma instituição era necessária. Portanto, entre todas as ciências que têm uma aplicação, é a Política o campo em que a teoria passa por diferir mais da prática, e não há homens que se pense menos próprios para governar o Estado do que os teóricos, quer dizer, os filósofos."...

Comentei:

Sensacional...

Espinosa recusa tanto o riso quanto as lágrimas, e o seu desígnio é 'compreender'... Gosto deste princípio... "Nem rir, nem chorar, compreender" - carta a Oldenburg... Para Espinosa, em sua refinada filosofia - ou podemos chamar, parafraseando Onfray, de 'a receita da beatitude espinosiana' -, o juízo de valor pouco ou nada importa; estando o filósofo bem acima do bem e do mal, em estado de contemplação, e inteiramente despido de tendências, procurando antever como as coisas realmente são...

Espinosa filosofa da mesma maneira que prescruta a natureza ao observá-la através das lentes bem polidas de seu microscópio... A singela observação das asas de uma borboleta pode catapultá-lo através de voos filosóficos... Espinosa "age da mesma maneira que Galileu, La Mothe Le Vayer, Gassendi, Cyrano e os libertinos, de olho grudado no telescópio." (Onfray, 2009)

Espinosa recusa o crivo - falsamente - moralista da Teologia e da Religião, em favor da filosofia praticada como Ciência... O que insisto em redefinir e reescrever como 'a atitude de tomar ciência, ou tornar-se ciente'... Espinosa quer a verdade... E fustiga a verdade, não além dos limites de garantir a sua integridade física....

Por isso esconde-se, desloca-se, traveste-se, oculta-se, sempre que pode... Como na máxima epicurista: "Esconde tua vida"... O seu selo de Espinosa, revela a natureza de sua busca e de suas conclusões: uma rosa 'espinosa' - ou espinhosa... Parafraseando Onfray, e novamente, devemos considerar que o 'parentesco' da vida de Espinosa com Epicuro parece bem mais do que evidentes, assim como a prudência que conduz a ambos, em meio à tantos desejosos por aparar seus espinhos, ou proceder a 'poda' de uma vez por todas...

Espinosa recusa-se a lecionar, recusa-se a publicar ou assinar seus livros, quando muito com as iniciais, e amiúde com o anonimato, chegando ao cúmulo, no caso da Ética, a aceitar a sua inescapável autoria... Esconde a correspondência com Leibniz, enfim, esconde-se, esconde sua vida... Nem mulher, nem homem, nem orgias gastronômicas, nem álcool, uma vida frugal... Tísico, envenenado em sua própria profissão, por partículas de vidro, adota - segundo o seu principal biógrafo, Colerus - uma vida ascética, austera, desprovida de excessos mundanos, voltada apenas para o essencial - Cui bono?...

Contrariamente a Descartes, que manuseia a razão moderna, mas adota uma postura velha, abandonando esta mesma razão em matérias religiosas e metafísicas, e estimulando ainda mais a dicotomia 'corpo e alma'; Espinosa garante que todos os seus espinhos estejam gravados em toda e qualquer questão, protagonizando verdadeiro ceticismo... A pena de Espinosa, submete toda e qualquer questão ao escrutínio da razão, emancipando e libertando a sua 'pensabilidade'...

O 'imperativo categórico' do ceticismo espinosiano, está conformado no 'Tratado Teológico Político', onde o seu princípio pétreo é sagrado: "separar a filosofia da teologia"... Sem impedir no entanto, ao contrário, estimulando a primeira - a filosofia -, a confrontar a segunda - a teologia... E o faz com maestria... Espinosa faz brilhar as "luzes naturais", onde outrora reinaram absolutas as "luzes sobrenaturais"... FIAT LUX...

Espinosa convida em sua "metodologia natural", à leitura de textos sagrados como nos debruçaríamos sobre - por exemplo - a magnum opus de Olvídio: 'Metamorfoses'... As escrituras sagradas retornam aos domínios mitológicos - e também antropológicos -, de onde nunca deveriam haver saído...

Espinosa teme, mas sem as nefastas hesitações de René Descartes... Espinosa vai além, e aprofunda a sua integridade intelectual, que mais de uma vez tentaram comprar ou usurpar... Espinosa recusa uma pensão oferecida por rabinos para calar-se... Depois recusaria outras pensões, desta vez para trabalhar em suas teses, até aceitar um bocado suficiente para viver com o mínimo do mínimo, porém livre, e livre de conflitos de interesse... Espinosa pensa, e compreende...

Mas Espinosa não foi um ateu... Precisaríamos esperar ainda pelas 'Ultra-Luzes', e por Jean Meslier... Espinosa é meio panteísta, meio agnóstico, mas seguramente figura em minha lista 'Meus Hereges Preferidos', ao lado de outros que não puderam irromper como ateus, mas tangenciaram esta posição... Afinal Protágoras afirmou que nada podemos afirmar sobre deus, sendo pois um 'agnóstico' - muito embora considere o agnosticismo uma falácia nomotética do deísmo, porque o ônus da prova cabe a quem propõe o enunciado, e sendo assim sem provar, não há enunciado, e não há deus, mas o agnosticismo, por medo, inverte este imperativo, ao afirmar categoricamente que 'não poderemos provar a não existências de deuses', tropeçando também na falácia do 'Reductio ad absurdum', posto que não se pode provar a inexistência de algo; sendo assim, o agnosticismo é uma crenças suavizada, mas ainda assim, uma crença -, como Epicuro e Lucrécio não são claros, mas anuem a múltiplos deuses, presos entre o politeísmo e o panteísmo... Charron, La Mothe Le Vayer, Saint-Évremond e outros libertinos barrocos, permaneceram presos à política do Vaticano, praticando uma espécie de cristianismo epicurista heterodoxo... Voltaire propõe o 'Grande Relojoeiro', Rosseau consente com esta demonstração deísta... Um ateu nega a existência de deus e não refina a sua definição... Baseado neste princípio, Espinosa - assim como muitos, livre-pensantes como Lucílio Vanini, que teve a língua cortada, foi estrangulado, e queimado, ou Giordano Bruno, também queimado, e desta vez vivo -, não foi um ateu... E nem tampouco foi um crente atormentado como Descartes e Kant... 

Mas devemos dizer que Espinosa foi um panteísta - ou uma espécie de 'animista', rsrsr -, fazendo coincidir deus com a natureza, o que considero uma 'Falácia Nomotética'... Mas no caso de Espinosa não foi tão simples assim... Espinosa despiu este deus de todos os seus atributos divinais... Mas precisaríamos esperar pelo Testament (Ite, missa est; II, 150) de Meslier para ler finalmente que: 'Não há deus' - Non sit alius deus... E realmente não há... Nietzsche fez a festa a partir deste ponto, bebendo ao mesmo tempo destas duas importantes fontes, Meslier e Espinosa... Espinosa é um mestre na integridade intelectual, mas não chega ao fundo desta questão: deus não existe...

Sendo assim, e por esta razão, Espinosa é muito mal utilizado por ditos 'agnósticos', ou por aqueles que ficam em cima do muro, recusando a religião oficial mas abraçando a metafísica... Stricto sensu, as escrituras não são para Espinosa mais do que panfletos de propaganda religiosa... E o inferno, existe? Claro que sim, mas Espinosa humaniza o inferno, fazendo coincidir com as paixões humanas - humano, demasiado humano, expressão que Nietzsche tratará de consagrar... E o pecado por Espinosa??? Espinosa evita o truque quase 'freudiano', prescrito na vulgata cristã de Agostinho, que trata de sexualizar o pecado original... Mas Espinosa escorrega, fala em perfeição, em "visar o conhecimento e Deus", afim de alcançar certa beatitude... Espinosa destrona os espectros espirituais, os fantasmas, e o faz por meio de uma célebre correspondência com Hugo Boxel... Espinosa trata dos fenômenos espirituais ou mediúnicos, como crendices pueris e truques... Extrapolando o conceito, Espinosa considera a alma invisível, imortal, imaterial, quase uma anedota... Os milagres idem... Para Espinosa os homens chama de milagres fenômenos naturais cujas causam eles ignoram... Nada escapa, segundo Espinosa, do sufrágio da Natureza... Outros haviam trilhado este caminho antes, como Lucrécio, Epicuro e o próprio Hipócrates...

Costumo estabelecer a diferença entre 'inexplicado' e 'inexplicável', e isso não poderia ser mais espinosiano... Acrescento ainda, e sinto cheiro de Espinosa no ar, que posso 'esperar para saber', sem o 'desespero de crer'... 

E sobre DEUS? Espinosa afirma que 'sim, deus existe', e combate sinceramente o ateísmo, recusando enfaticamente que sua obra negue a existência de deus... Mas Espinosa despe deus do antropomorfismo, e de boa parte de sua divindade... Mas o deus de Espinosa não coaduna em nada com o deus dos teístas... Em carta a Boxel, e sobre a santíssima trindade, ele afirma que "um triângulo dotado de palavras, exprimiria a natureza triangular de deus"...

Sobre a ressurreição de Cristo, Espinoza alega que nada escapa ao real, sugerindo ser esta também uma alegoria, indicando apenas que depois do velho vem o novo, e assim sucessivamente... Este seria em síntese o seu conceito 'ressurreiçório'... O Gênesis não passa de alegoria, barro, sopro, etc... E quanto à Adão??? O Adão espinosiano é um tanto controverso, assim como controversas são certas alegação de transmutação da substância, na tentativa de esclarecer sobre a continuidade da vida, em uma espécie de 'física epicurista'... Espinosa é um gênio em seu tempo, mas aqui começamos a esbarrar em seus limites...

Espinosa passa perto do destino de Uriel da Costa, que começa a carreira levando 39 chibatadas por ter duvidado da imortalidade da alma, questionado a vida eterna, escarnecido e ridicularizado muitos dos costumes judaicos e talmúdicos... A tolerância, no século XVII, não era uma das virtudes da comunidade judaica... Mas Uriel não deixou barato, em 1624, publica 'Exame da Tradições Farisaicas', pegando pesado nas tradições bíblicas, e é então condenado, e tem os exemplares de seu livro queimados... O 'povo de deus', os judeus portugueses, indicam sua sentença e expiação, pelo flagelo... Uriel se recusa por oito anos, ao que se submete, sendo então amarrado, seminu, enquanto é chicoteado sem predão pelos seus patrícios... Uriel então é colocado no chão na entrada da Sinagoga, enquanto a congregação passa pisoteando sobre o seu corpo ensanguentado... Ele então redige sua autobiografia, 'Exemplar Humanae Vitae' - 'Exemplo de Vida Humana' - e então se mata...

Uma pintura do século XIX retrata Espinosa ainda criança, nos braços de Uriel... A veracidade da cena é pouco provável, mas sem dúvida Espinosa foi profundamente influenciado pela vida e os escritos de Uriel... Espinosa, por sua vez, recebe a sua excomunhão aos 23 anos... Um discípulo aplicado de Uriel, começa cedo... Em 27 de Julho de 1656, Espinosa recebe o hérem ou chérem, a mais elevada punição judaica... Uma linda data, que marca disposição de um homem em defender sua integridade intelectual - sem reservas...

O deus de Espinosa evidentemente não coincide com o deus judaico ou cristão, já que as duas tradições insistem no dogma de que deus é anterior ao mundo e anterior a tudo, tendo sempre existido... Criador e criação estão separados... Deístas, teístas, e fideístas compartilham desta crença... Filósofos crentes anuem, embora embolem um pouco de erudição do tipo 'primeiro motor', 'primeira causa', coisas assim... Espinosa ressalta, no entanto, a imanência entre deus e sua criação, e esta é uma "ruptura cardeal" (Onfray, 2009), pois ele não crê e não concebe um deus separado do mundo... 

Espinosa varia na inflexão quando teoriza sobre o seu deus, mas nunca se afasta desta ideia central, da identidade entre deus e a natureza: 'Curto Tratado' - "(..) a natureza, em outras palavras deus..."; carta a Osten - "Deus é o universo."; e na Ética, claro, no prefácio do livro - com a célebre "Deus Sive Natura", ou "Deus ou a Natureza"... Isso confere a Espinosa o rótulo de panteísta, e seria inútil aprofundar a tese do ateísmo... Mas Espinosa fez tanto, e tanto, que podemos perdoá-lo por não haver cruzado esta fronteira... E outros, e muitos depois dele, que puderam romper tal paradigma, devem em grande medida, parte deste esforço, à Espinosa - nascido 'Ben Michel'... Após o chérem, Espinosa adota o nome de 'Benedictus Espinosa', ou 'Bendito', a tradução do seu nome original 'Baruch' para o latim... 

Este 'Bendito Espinhoso', foi descrito por Bertrand Russel na impagável 'História da Filosofia Ocidental como "o mais nobre e o mais humilde dos grandes filósofos"... Eu assino embaixo, mas quem sou eu??? Assino embaixo mesmo assim, rsrsrsrsrs...

Gosto de citar este verdadeiro impulso ao gênio de Espinosa, sua excomunhão, o seu chérem: 

"Tendo falhado em fazê-lo corrigir seus modos perniciosos e, ao contrário, recebendo informações cada vez mais sérias sobre as heresias abomináveis que praticava e ensinava e sobre seus FEITOS MONSTRUOSOS - grifo meu -, decidiram que o chamado Spinoza deveria ser excomungado e expulso do meio do povo de Israel. Por decreto dos anjos e ordem dos homens santos, NÓS EXCOMUNGAMOS, EXPULSAMOS, AMALDIÇOAMOS E CONDENAMOS - grifo meu -, Baruch de Spinoza, com o consentimento de Deus (Bendito seja Ele)... AMALDIÇOADO SEJA ESSE HOMEM DURANTE O DIA E AMALDIÇOADO SEJA À NOITE; AMALDIÇOADO SEJA AO DEITAR E AMALDIÇOADO SEJA AO LEVANTAR. AMALDIÇOADO SEJA QUANDO SAIR E AMALDIÇOADO SEJA QUANDO ENTRAR - grifo meu."... Como se não bastasse, acrescentaram que: "O Senhor não o poupará, ao contrário, QUE A IRA DO SENHOR E SEU ZELO FUMEGUEM CONTRA AQUELE HOMEM E QUE TODAS AS MALDIÇÕES ESCRITAS NESTE LIVRO - a Bíblia, grifo meu - CAIAM SOBRE ELE, E QUE O SENHOR APAGUE O SEU NOME DEBAIXO DOS CÉUS."...

O "Senhor" não apagou e não apagará o nome de Espinosa... A integridade de Espinosa venceu contra velhacos doentios, ruminando maledicências bíblicas... E o mais grotesco neste juízo é a completa falta de argumentos... Um homem livre, digno, bom, é execrado por PENSAR, e porque rejeita SUBMETER-SE... Que "feitos monstruosos"??? Monstruosa é a ignorância do deserto que continua impedindo a oxigenação de muitos cérebros... Espinosa poliu as suas lentes, e VIU... O pomo da discórdia, que não é citado na 'sentença', refere-se à uma antiga controvérsia viciosa, que Espinosa teimou em reavivar, sobre 'o que acontece com a alma após a morte'...

Na parte V da Ética, Espinosa escreve que a mente humana "não pode ser absolutamente destruída com o corpo, mas algo dela é eterno e permanece"... Como??? Essa parte eterna seria uma "ideia que expressa a essência do corpo humano, sub specie aeternitatis, e que pertence à essência da mente humana"... E??? Não gostei disso, parece uma 'asneira dita com erudição, uma asneira com classe'... De forma que, sendo um iconoclasta, devo refutar esta parte do corpus de conhecimento de Espinosa... Aliás, muitos atribuem este conceito de Espinosa, ou seja, a imortalidade da mente humana ao 'corpus de conhecimento humano', o registro físico e que permanece, do conhecimento humano acumulado... Mas fica evidente que Espinosa não mira nisso... E outros atribuem o texto supra-citado à existência da alma e à metafísica... Já que Espinosa também diz que "a substância persiste, mas seus modos mudam... Imortalidade da substância, mortalidade de seus modos"...

Espinosa luta com o conceito de deus e alma, e não deixo de perceber certa hesitação, e quase um truque, ao negar a imortalidade da alma, mas criar condições para a imortalidade da mente... Evidentemente, e uma vez que sabemos que não existem almas, nem mentes imortais - embora ideias possam ser imortalizadas, meramente pelo registro, sem subterfúgios metafísicos -, Espinosa precisou de artifícios para provar como certo o que está errado... Foi mais longe que Kant e Descartes, mas não pôde intuir os avanços que se seguiriam: Darwin, Mendel e Cajal... Espinosa fez muito, mas não fez tudo... O problema é que Espinosa, diferentemente de outros como Meslier, Russell, é tomado como infalível e quase divinal, e não foi... Mas 'sim', figura no mais alto nível do panteão do pensamento humano... Teria feito miséria após o Círculo de Viena, rsrsrsrs...

Espinosa antecipa a mecânica incestuosa entre religião e poder político, a genealogia da religião, onde a irracionalidade, ativada pelo pensamento mágico e sobrenatural, entra em cena ora para conjurar nossas angústias existenciais, ora para aplacar o medo do desconhecido... Espinosa reedita Lucrécio - Da Natureza -, para quem afinal os homens inventam deuses por medo - medo do desconhecido, da morte, do tempo que não pára, do destino, da realidade, medo de viver...

Tenho aludido ao velho esquema do poder religioso de 'incutir o medo para vender a salvação'... A máfia também entendeu o recado... Tal conceituação, no entanto, precede a Espinosa, e precede a Lucrécio... E resistirá em homens como você e eu... Thomas Hobbes é outra influência para Espinosa, que acrescentaria ainda que a política, os reis, reclamam sua legitimidade por meio do incesto com o poder religioso, onde obedecer ao poder monárquico corresponde em igual medida a anuir à vontade de deus... Romper com o monarca seria romper com deus... Para isso, e apenas como exemplo, Felipe IV, Felipe o Belo muda a sede do Santo Ofício de Roma para Avignon na França, no século XV, quando a França dominava o mundo, e quando os templários são cassados, como resultado de tal aliança...

É nesta linha que o Tratado Teológico-Político se exprime como uma autêntica conclamação republicana, e uma severa oposição à monarquia 'divinal'... A laicidade encontra aqui seu representante maior... Espinosa quer a separação entre homens, deuses e eclesiásticos... E questiona a legitimidade da autoridade do papa, motivo pelo qual se redige a Constituição Dogmática Pastor Aeternus, estabelecendo os cânones da primazia, da infalibilidade papal, assim como a sua legitimidade - INQUESTIONÁVEL: 

"Se, pois, alguém disser que o Apóstolo S. Pedro não foi constituído por Jesus Cristo príncipe de todos os Apóstolos e chefe visível de toda a Igreja militante; ou disser que ele não recebeu direta e imediatamente do mesmo Nosso Senhor Jesus Cristo o primado de verdadeira e própria jurisdição, mas apenas o primado de honra – seja excomungado.
Se, portanto, alguém negar ser de direito divino e por instituição do próprio Cristo que S. Pedro tem perpétuos sucessores no primado da Igreja universal; ou que o Romano Pontífice não é o sucessor de S. Pedro no mesmo primado – seja excomungado.
Se, pois alguém disser que ao Romano Pontífice cabe apenas o ofício de inspeção ou direção, mas não o pleno e supremo poder de jurisdição sobre toda a Igreja, não só nas coisas referentes à fé e aos costumes, mas também nas que se referem à disciplina e ao governo da Igreja, espalhada por todo o mundo; ou disser que ele só goza da parte principal deste supremo poder, e não de toda a sua plenitude; ou disser que este seu poder não é ordinário e imediato, quer sobre todas e cada uma das igrejas quer sobre todos e cada um dos pastores e fiéis – seja excomungado.
Por isso Nós, apegando-nos à Tradição recebida desde o início da fé cristã, para a glória de Deus, nosso Salvador, para exaltação da religião católica, e para a salvação dos povos cristãos, com a aprovação do Sagrado Concílio, ensinamos e definimos como dogma divinamente revelado que o Romano Pontífice, quando fala ex cathedra, isto é, quando, no desempenho do ministério de pastor e doutor de todos os cristãos, define com sua suprema autoridade apostólica alguma doutrina referente à fé e à moral para toda a Igreja, em virtude da assistência divina prometida a ele na pessoa de São Pedro, goza daquela infalibilidade com a qual Cristo quis munir a sua Igreja quando define alguma doutrina sobre a fé e a moral; e que, portanto, tais declarações do Romano Pontífice são por si mesmas, e não apenas em virtude do consenso da Igreja, irreformáveis. Se, porém, alguém ousar contrariar esta nossa definição, o que Deus não permita, - seja excomungado."...

Muito me recorda a excomunhão de Espinosa, e as mesas apregoações, farinha do mesmo saco, barro no mesmo lamaçal... 

Na totalidade de sua obra, e sem mais circunlóquios, Espinosa fala em uma "religião imanente", que "também é uma religião de imanência" (Onfray, 2009); sintetizada nos seguintes conceitos: "Justiça e Caridade"... Espinosa não se cansa de repetir isso, e não precisamos dizer muito mais à respeito... Nem deus transcendente, nem vida post mortem, nem juízo final, nem culpa, nem destino que escape à natureza... Existem mais de 500 registros do nome 'Deus 'não Ética, que sempre está acompanhado de alguma definição, e mais especificamente precisando o que 'deus' não é... Mas considero um caso sofisticado de falácia nomotética, e considero que Espinosa relutou em aceitar a inexistência de deus, o que o levou e perder precioso tempo em redefinir o seu papel...

O deus de Espinosa existe, situa-se no plano do real, é único e eterno, e age em função de sua natureza, causa livre de todas as coisas, tudo está nele de dele dependem, sem ele nada pode existir ou ser concebido, todas as coisas decorrem de sua potência infinita, tudo o que pensa ou não, sendo pois incorpóreo, não estando sujeito à paixões e preferências, sem espírito, não estando sujeito à nenhum tipo de vontade, sendo a causa imanente de tudo, sendo sua obra existência coincidentes, sendo portanto a única substância a existir na natureza... Ok... Mas como podemos evidenciar tudo isso??? Esta figura nomotética e sofisticada, é criada por Espinosa como exercício do mero constructo... E daí a minha crítica... Ele fez mais do que Descartes e Kant, bem mais, e refiro-me à descrição de deus, mas ainda assim, e precisaremos encarar isso: Espinosa persistiu no erro...

Espinosa poupa deus, e mais do que isso, no Tratado Teológico-Político, ele escreve coisas como: 

"Então Deus revelou-se aos apóstolos por meio de mente de Cristo, como anteriormente havia se revelado a Moisés por meio da voz celestial. E portanto, a voz de Cristo, como aquela ouvida por Moisés, pode ser considerada a voz de Deus. E neste sentido podemos dizer que a Sabedoria Divina, ou seja, uma sabedoria que ultrapassa a humana, assume uma natureza humana em Cristo."... 

Manipulações sofismáticas perdidas... Espinosa não pode ser endeusado sob nenhum pretexto... Sua obra é moderna, mas apresenta inconsistências, e até decepções... O deus de Espinosa, apesar de reformado, ainda assim é DEUS... 

Espinosa esta inserido no Zeitgeist - conceito que remonta a Herder, antes de Hegel, mas que não se refere aqui, e em absoluto, ao movimento homônimo, conspiracionista e fanfarrônico - do século XVII, o séculos da Luzes, e suas ideias são consoantes os ditos com "Libertnos Barrocos" (Onfray, 2009)... A Filosofia de Espinosa, mais do que decuplica a força filosófica de Descartes, e antecede o que virá com Kant... Este último não aprendeu com Espinosa, e tratou de contra-atacar... Sem sucesso... Espinosa passa adiante como inspiração para as "Ultra-Luzes"... E finalmente deus estará morto, mas não pela geração de Espinosa... 

Espinosa mostraria o caminho, Meslier seria o algoz, e Nietzsche levaria os créditos... O mundo ganhou com todos estes homens... O esquisitão Espinosa fez um bom trabalho...

Mas:

"Se as coisa devessem ser diferentes do que são, isso envolveria uma mudança na vontade de Deus, e essa não pode ser mudada (como foi muito claramente demonstrado pela perfeição de deus - rsrsrs, o riso é meu, afinal não aguento o exercício do mero constructo); portanto, as coisas não poderiam ser de outro modo senão como elas são. (Ética, Parte I, Nota 2, à proposição XXXIII)... 

Espinosa ensaia o esvaziamento dos desígnios morais do Universo, embora cite 'deus', ao invés de natureza... Teria sido realmente um texto moderno, se Espinosa tivesse dito NATUREZA, mas este ajuste ainda não seria suficiente, afinal Espinosa ainda fala em 'VONTADE', e isso complica muito... Mas Espinosa conclui esta passagem de forma entusiástica, alegando que um "homem livre" não deve pensar "em nada menos do que na morte; e sua sabedoria é uma meditação não sobre a morte, mas sobre a vida"... Costumo dizer que 'entenda a morte, e entenderá a vida', e já não me recordo de onde, e com quantos homens notáveis aprendi o aforismo e o conceito... Mas Espinosa privou-se de alguns dos prazeres que demarcam a natureza humana, como o sexo, o afeto, o afeto compartilhado... E canalizou sua humanidade para uma espécie de castidade ou celibato auto-imposto, ao que tudo indica, casando-se com a Filosofia... E foram felizes para sempre... Deus, e os seus algozes estavam errados, e nada pôde - e porquanto não existe - contra a integridade intelectual e humana... Deus nada pôde contra Ben Michel...

Carlos Sherman

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